10 outubro 2011

C-018 - Ponto de vista



Esta história aconteceu algures, há muitas centenas de anos, numa região do interior da China.

O senhor Li Chan estava desgostoso com a sua vida, monótona, sem perspectivas. 
Resolveu deixar a sua aldeia, a sua casa, o seu jardim, a sua esposa e os seus filhos.
E assim fez.
Com um pequeno farnel, um cantil de água, e uma manta apenas, partiu estrada fora. Foi andando, andando, até que deixou de ouvir vozes e sons conhecidos, só tendo por companhia o ruído dos próprios passos, 
Caminhava sem pressas e sem voltar o rosto para trás.
A estrada acabava numa ponte, e a meio dela sentado no chão estava um velho homem.
O senhor Li inclinou levemente a cabeça, e já ia seguir sem se deter quando a voz do ancião o obrigou a parar:

–Rapaz, aonde vais tão apressado que nem me desejas bom dia? Um dedo de prosa não se nega a ninguém, não achas?

–Desculpe "avozinho", eu ia a conversar comigo mesmo... Mal dei pelo senhor.
Só vou a olhar em frente.

O velho sorriu e voltou a perguntar:

–E o que vês tu em frente, se estás a olhar para dentro de ti, se vais a falar só contigo?

–Nada, na verdade ainda não vejo nada de diferente, mas devem haver outras coisas que não a minha aldeia, e a minha estúpida vida! – respondeu-lhe impaciente – Deixei tudo para trás e vou à procura de algo novo, algo que me desperte novamente o desejo de viver. Irei andando até encontrar!

–Se quiseres eu mostro-te.

O senhor Li, que já se preparava para retomar a sua caminhada, parou e meio brusco e pergunta por sua vez:

–Oh bom velho, o que poderá o senhor me mostrar se o vejo aí sentado a meio duma ponte, e nem sei se vai de saída ou se está a chegar?!

–Acredita em mim, vou mostrar-te. Faz exatamente o que eu fizer, e depois me dirás se tenho ou não razão na novidade que então verás.

Isto dizendo, o velho levantou-se com surpreendente agilidade, e fazendo sinal ao outro para se livrar de seus magros carregos, postou-se a seu lado, ambos de costas para a aldeia.

–Prepara-te. Cerra os olhos.Vamos respirar fundo e depois nos curvar até o cabelo quase tocar o chão, deixando o rosto ficar preso pelas orelhas entre nossas pernas. Sustem a respiração. Só quando sentires o calor do sangue a iluminar tua mente poderás abrir os olhos e respirar. Então verás!

Não querendo mais delongas e para se livrar da conversa, Li resolveu não o contrariar e fingindo que acreditava fez tal qual o outro mandara.

Se alguém por ali tivesse passado, o que não aconteceu, certamente iria rir de tão insólito espetáculo. Dois homens, um velho e um outro que nem os cabelos brancos ainda tinha, postados a meio de uma ponte, dobrados sobre si mesmos, olhando por entre as pernas não para a frente mas antes para trás, com os rostos vermelhos e os olhos quase a saltar.

O senhor Li, quando abriu os olhos, maravilhou-se com as cores do céu, com os muitos verdes da vegetação que ladeava uma pequena mas encantadora aldeia. Surpreendeu-se com o canto das aves, de que só se lembrava ter ouvido na sua infância. E ouviu o regato que ia cantando de pedra em pedra bem ali ao lado.
Até que as lágrimas lhe correram rosto a cima, também elas em sentido contrário.
Não agüentando mais a respiração suspensa, endireitou-se e sorvendo o ar deu meia volta procurando a visão que tanto o encantara.
Viu então como era linda a sua aldeia, e lá ao fundo a sua casa, e lá dentro a sua família, os tesouros da sua vida que estivera prestes a abandonar.

Quis então agradecer ao sábio velho que lhe ensinara a olhar a vida por outro ponto de vista, mas não encontrou ninguém por perto.

A noite vinha vindo e Li Chan apressou o passo feliz por voltar.

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