31 outubro 2010

Dia de Saci : a história de "Alcides, o pequeno sapo"

Era uma vez um pequeno sapo chamado Alcides.
Certo dia, navegava ele tranqüilamente pelo rio abaixo, numa grande folha de Vitoria Régia, quando ouviu um assobio.
Para afastar o medo, encheu o peito de ar e coaxou o mais forte que sabia.
Enquanto isso, com um olho lia as sombras na água e com o outro varria atentamente a margem mais próxima, e depois a outra, e por fim a copa das árvores.
Nada se movia, nada se ouvia, ele continuando lentamente pelo rio abaixo.
Aprendera este truque de olhar dividido, com um primo distante,  de Portugal, o Manezinho Camaleão. Ele viera passar férias a este lado do oceano, e tornaram-se grandes amigos, ensinando um ao outro as suas habilidades.
Alcides maravilhava o primo, que temia a água, com seus longos mergulhos e saltos de folha em folha
Por seu lado Manezinho exibia a cauda que mais parecia um terceiro braço, e movia os olhos salientes em rotações completas, cada olho fazendo o que bem lhe apetecia.
Quanta coisa para recordar dessas breves férias...
Novamente um assobio, agora mais forte, interrompeu os pensamentos do sapinho, que preocupado a valer, redobrou de atenção e mal respirava para melhor ouvir.
Foi então que viu as ervas e flores junto dum lindo Ipê Amarelo, a se movimentarem, parecendo até que andavam de roda
Muito estranho! À volta, tudo o mais estava parado, como que dormindo ou encantado. E Alcides concluiu  que seriam as flores e as ervas cantando e bailando que causavam tal rebuliço.
Está tudo bem, pensou. E recostou-se no seu barco-folha, saboreando um inseto que passara perto.
Ora está um assunto que gostaria de contar ao primo, quando se encontrassem de novo: A dança das flores e do vento! Isso é que ele iria ficar admirado... 
Alcides, consciente da importância do "causo", dirigiu a embarcação para a margem e em três saltos atingiu uma moita de arbustos próximo da roda silvante.
Todo o cuidado é pouco quando nos deparamos com comportamentos estranhos e, sem sombra de dúvida, aquele era o caso.
Aproximou se um pouco mais, e de repente, sem que pudesse saber porquê, começou a ter uma vontade louca de rodopiar também.
E dançou, dançou, como nenhum sapo antes dançara.
Por fim, reunindo todas as suas forças, deu um enorme salto para cima duma rocha. Ele sabia que as pedras, fora de água, muito raramente se mexem. 
Estava exausto, cheio de sede, reparou então que a língua se lhe enrolara no pescoço, como se fora um cachecol. Felizmente, ainda havia alguma água da chuva da noite, depositada nas reentrâncias da rocha. E mergulhou nesse banho benfazejo e reparador.  
Lembrou-se da Mãe Sapa que sempre lhe dissera para nunca se afastar da água, e de como ela, a água, era tão preciosa e necessária. E lembrou-se do Pai, o Pai Sapo, que sempre observava tudo atentamente antes de se aproximar, e se possível camuflado entre os verdes da vegetação, com os olhinhos de fora
Estes pensamentos levaram Alcides a saltar para umas folhas bem verdes e cobertas de orvalho. Então pôde olhar melhor à sua volta.
E foi que viu uma coisinha vermelha se movendo de um lado para o outro.
Parecia um cogumelo, mas isso era impossível, nunca ouvira falar que eles pudessem andar por a correr pelos campos.
Ah! Ali havia coisa! Oh se havia!
Como que respondendo às suas dúvidas, novamente se forma um remoinho, e as flores, as folhas, as ervas, todos começaram a girar à volta do tal pontinho vermelho, que até fumegava. 
Antes que conseguisse fugir, ouviu uma gargalhada, também ela voadora, e meio tonto, rebolou para o chão, caindo no meio do baile.
Que surpresa o esperava. 
Segurando um cachimbo e saltitando numa perna , estava um negrinho rindo e agitando seu chapeuzinho no ar.
Pois não é que era seu Saci em pessoa!
E Alcides nem sabia se devia aproximar-se, ou correr para bem longe dali.
A curiosidade venceu, e enchendo-se de coragem, cumprimentou aquele ser endiabrado, mas simpático.

Como vai. Festejando a Primavera?

–"Eh! eh! eh
   Não tens medo de mim?
   Eh! Eh! Eh!
   Sou o Saci Pererê, 
   Eh! Eh! Eh! 
  Tudo sabe e tudo vê!"

– "Quero ser seu amigo, isto se o Senhor deixar", disse o pequeno sapo, já feliz com o rumo da conversa.

– "Eh! eh! eh!”, respondeu Saci:

  "Quem é ruim 
   fuja de mim,
   quem é mau
   leva com pau,
   quem é tolo 
   leva com bolo,
   quem bem quer 
   pode me ver."

E isto dizendo, mandou parar o vento, e tudo à sua volta se aquietou. 

Saci olhou dentro dos grandes e admirados olhos do sapo. E gostou do que viu.

– “És um bom rapaz
   e isso me apraz 
   Um pouco curioso.
   e algo teimoso
   Tens bom coração
   serás meu irmão!”

E assim foi que ficaram grandes amigos.

Saci convidou Alcides para a festa que estava comemorando naquele dia com todas as plantas, as flores, as árvores e mais os animais da redondeza, que deviam estar a chegar a qualquer momento. Explicou-lhe como aquela era uma data importante, uma altura em que tudo era ternura e travessura, algumas surpresas e muitas estranhezas, mas todos amigos e divertidos, e terminou recomendando que todo ano se deveria lembrar deste acontecimento.
O sapo ficou assim a saber que, todo o dia 31 de Outubro, era dia de Saci.
Alcides prometeu nunca esquecer, e depois de pensar um pouco na forma de comemorar, disse:

– “Pois meu bom Senhor Saci, saiba que sempre o lembrarei, e mais, vou ensinar a todos os sapos, rãs, salamandras e camaleões a assobiar e fazer remoinhos na água. Olhe, me desculpe se não o abraço, mas é porque a minha pele está sempre viscosa e úmida, e também esse seu cachimbo me faz tossir.
Adeus e obrigado pela festa”

E isto dizendo, saltou para o rio e desapareceu, deixando atrás de si círculos e mais círculos, que se alargavam pela superfície da água até à margem, onde Saci os apanhou e atirou ao ar.
Que lindo Arco Íris se formou!
E Saci riu de contente e dançou numa perna só, que até dava gosto ver.

Esta foi a história do pequeno sapo Alcides, que encontrou o Saci na floresta à beira dum rio. 

                                                 
                                                            ***

Claro que Alcides seguiu logo para a sua casa, no lago ali próximo. 
E foi uma falação, disto e daquilo, de como tinha ficado amigo, e até dançado com seu Saci Pererê, do gorro vermelho, das flores e do vento, da prosa que trocaram, e de como ele haveria de escrever e contar esta aventura a seu primo Manezinho, e depois mais tarde, muito mais tarde, também contaria esta aventura extraordinária aos seus próprios filhos...

Os Pais sorriram entre si, mas logo acrescentaram:
 –Sim, sim, nós acreditamos que você esteve mesmo com o Saci, mas agora é hora de dormir meu filho! 

E que sonhos ele teve nessa noite cheia de estrelas e luar. 
Mas isso fica por contar, pois os sonhos fogem ao acordar.


Eugénia Tabosa
31 de Outubro 2010





10 julho 2010

Seu Raimundo e a Bola


Seu Raimundo e a Bola
 
Ele era tarado por um joguinho de bola. em criança, lhe bastava uma meia cheia de terra, um terreno plano, e ia ele feliz, fazendo fintas a imaginários adversários.

 No emprego, um ouvido no rádio seguindo qualquer relato , um olho no trabalho, cuidando fazer o mínimo necessário, era amigo de todo mundo, mas diziam que em dia de copa ele não dava bola para ninguém,

 Em casa, a mulher reclamava de sua obsessão por tudo que era redondo e podia rolar. As laranjas, maçãs e até os novelos de do seu tricô não tinham sossego nos pés do  Raimundo.
Isto sem falar dos protestos dos filhos, principalmente do Mundinho, que achava que o pai não tinha mais idade para brincar aos domingos com a molecada, na rua.

E ele sorria, encolhia os ombros e, como que se desculpando, dizia que era coisa de nascença, de família, e lembrava o tio que jogara sinuca até o reumatismo o prender à cama. Esse, quase casara, mas a noiva deu de cismar quando lhe contaram que ele dormia com uma bola por travesseiro e um cobertor verde.

Tudo corria assim mais ou menos bem, quando lhe ofereceram um curso de computação na compra dum cortador de papel, uma máquina de imprimir e um computador antigo, em suaves prestações mensais.

E durante uns tempos aquele computador foi uma coisa que trouxe grande tranquilidade e harmonia à casa e à vida de todos.

Até que, como se diz na dialéctica, a quantidade muda a qualidade, Raimundo foi promovido, comprou um computador portátil, e passou a estar “ligado” as 24 horas do dia, e tendo acesso ilimitado a todos os canais de informação descobriu sua real vocação: divulgador das virtudes da Bola.

Entrou nessa tarefa de corpo inteiro, cheio de entusiasmo e , como se de uma missão se tratasse, não tardando a perceber quão vasto era o potencial daquele tema. E, literalmente falando, ele correu atrás da bola e percorreu o mundo.

Viu estádios, comparou equipes, decorou o nome de jogadores e árbitros. Sabia das dimensões dos campos, formato e histórias de traves, redes, bolas, apitos, até da grama verde ele sabia algumas coisas. 

Comprou livros sobre o assunto, e óculos de médio alcance com aros de tartaruga que lhe deram um ar entendido e lhe deram outro estatuo na vizinhança.

Seu Raimundo sentiu necessidade de falar, dividir todo este conhecimento, não ficando reduzido apenas à casa, ao café ou ao seu local de trabalho. Não que tivesse achado pequeno interesse da parte dos ouvintes, pelo contrário, todos lhe passaram a dar a maior atenção e respeitavam seus conhecimentos.

Foi convidado pelo patrão para a sua casa de campo, não uma, mas várias vezes.

Pode-se dizer que ele alargou o campo de sua vida. Tudo graças à bola. E com isso mais o seu entusiasmo crescia, redobrava.

Uma noite, quase madrugada, teve um sonho revelador:
- Deus criara o mundo na forma de uma bola e corria pelos céus jogando com um bando de arcanjos e querubins. O campo de nuvens mudava constantemente de figura, o que, com as vestimentas dos jogadores tornava o jogo imprevisível e cheio de quedas e empurrões. Numa dessas escorregadelas Deus irado chutou para fora do campo, tendo essa bola-mundo despencado por a baixo, caindo no Palácio do Governo quase atingindo o mastro da bandeira.
Acordando sobressaltado refletiu e maravilhou-se com o poder da mente humana, e de como eram possíveis grandes descobertas mesmo dormindo. Assim o mundo avança.

E porque não?, pensou alto. É mesmo que ela deve estar! Bem no meio de todo aquele campo verde, a flutuar ao som do Hino Nacional.

Decidiu então que seria deputado, senador, governador talvez.
Poderia assim cumprir sua missão, seria um membro do estado e não apenas uma peça sem valor. Sua voz seria ouvida e a sua opinião atingiria outros, levando, quiçá, a nação toda em peso a exigir essa sua proposta de modificação.

Sempre optimista e determinado, lançou-se nessa jornada tendo reunido vários adeptos em pouco tempo, Fez conferências, foi a grandes jantares e convívios por todos os cantos do país. Foram inúmeros as iniciativas e projetos que apadrinhou. Abriu concurso para um museu com tema e forma de bola rodeado de belos prados extensos. E, a exemplo do que havia em Portugal, fundou o jornal “A Bolaque também aqui rápidamente se tornou numa espécie de Biblia nacional, presente em todas as casas e lido nos transportes e no trabalho.
Contribuiu assim para o combate ao analfabetismo e à integração plurialista    na sociedade e, como é indispensável assinalar, ao desporto como um todo e em particular.

 Ouvi dizer à pouco que Raimundo tinha sido proposto para receber um prémio de benfeitor da humanidade, pela divulgação, desenvolvimento e interesse por este tema de indiscutível e mundial interesse.

Porém o que nunca conseguiu, foi concretizar aquele sonho lindo, e ver a a sua amada bola envolta em seda verde, flutuando ao vento, acompanhada pelo som do Hino Nacional.

Eugénia Tabosa
2010

12 março 2010

Era uma vez Deolinda


Era uma vez Deolinda

Noite sem lua, os sons tinham perdido seu sentido, e do vento sabíamos apenas porque as sombras se moviam.  Parecia que o tempo parara. Alguém disse: Tempo de fantasmas. Sim, é de não sair nem a porta abrir. E só meios sorrisos responderam.
Malaquias, o gato, eriçou o pelo e gemeu. No mesmo instante, faltou a luz e bateram à porta. Quem pode ser? Estamos todos aqui! E ninguém se moveu.
Sem ruído, uma mancha escura, como vinho derramado, esgueirou-se, porta adentro, pelo buraco da fechadura. Cruzes, te arrenego, vai-te coisa ruim. E todos quisemos fugir, mas já o lodo e o medo nos tinham envolvido e paralisado.
Quanto tempo se passara? Vá lá se saber... Um minuto, uma hora, um mês?
Por fim voltou a eletricidade. O rádio começou a tocar um fandango endiabrado, acompanhado por pratos, guizos e uns sons guturais que pareciam de cuíca, mas talvez fossem de alguém a agonizar, pensei.
Tentando tranquilizar-me, abracei-me e ninei-me como a um filho. Nesse enlace, encontrei a pregadeira com que me enfeitara para sair, e com ela abri um pequeno rasgo no manto que me tolhia os movimentos.
Com os olhos embaciados de frio e lágrimas, apercebi-me de que nos transformáramos em casulos, espalhados pelo chão. Mesa, cadeiras, móveis, tudo estava amontoado a um canto, na maior desordem. Espalmado contra o vidro da janela estava o gato.
Esta visão encheu-me de terror. E creio que desmaiei.
Fui sacudida do meu torpor pela sensação estranha de estar flutuando. Desaparecera o frio e meu corpo podia mover-se à vontade dentro daquele invólucro. Ruídos de vento e mar fizeram-me pensar em verdes campos e doces praias da minha infância.
– Que pesadelo eu tive! – exclamei. Mas não reconheci minha voz. Toquei meu rosto e não era mais ele, nem meu gesto me pertencia já.
Eu me distanciava de mim, mas meu pensamento ainda era eu. Eu, sem peso nem medidas. E sem espelho, para saber se meu estado era líquido ou gasoso.
Ouvi alta e inquietantemente perto uma voz áspera, que me lembrou de meu professor de latim. Não compreendi aqueles sons que me atingiram fazendo vibrar o casulo, minha casca-casa-prisão, pondo-me a rolar pelo soalho. Tão leve eu estou, pensei. Ai de mim, que de mim não sei.
Novo turbilhão de palavras, agora acompanhado de terra e flores, aumentou o meu desnorteamento. Senti o cheiro do perfume de minha mãe e quis gritar por ela. Ela, tão diferente dela, de preto vestida e amparada por outras mulheres. Porquê todas iguais? E velhas? Uma grande tristeza e compaixão me tomaram. E chorei por todos nós.
– Juntem o gato – alguém disse baixinho. – Deolinda o amava tanto, andavam sempre juntos...
E assim fizeram.
Admirei-me do silêncio que nos envolveu, mas antes assim, talvez conseguisse dormir. Quem dorme, esquece, e no esquecimento não há dor. Se ao menos houvesse luz, mesmo fraca, ficaria menos infeliz.
Então senti que algo se movia a meu lado, e um suave calor me envolveu. Malaquias, meu gato de sete vidas, estava ali bem junto a mim.
Olhamo-nos através do escuro, ambos surpresos de nossa condição. Seus olhos brilhavam como um farol, iluminando meu desespero, mostrando-me um caminho. E, pelo espanto de suas pupilas dilatadas, eu entrei sem medos.
E foi sem medos que saltamos por entre terra e flores para fora do túmulo, e começamos uma nova vida.

Eugénia Tabosa
2010