12 março 2010

Era uma vez Deolinda


Era uma vez Deolinda

Noite sem lua, os sons tinham perdido seu sentido, e do vento sabíamos apenas porque as sombras se moviam.  Parecia que o tempo parara. Alguém disse: Tempo de fantasmas. Sim, é de não sair nem a porta abrir. E só meios sorrisos responderam.
Malaquias, o gato, eriçou o pelo e gemeu. No mesmo instante, faltou a luz e bateram à porta. Quem pode ser? Estamos todos aqui! E ninguém se moveu.
Sem ruído, uma mancha escura, como vinho derramado, esgueirou-se, porta adentro, pelo buraco da fechadura. Cruzes, te arrenego, vai-te coisa ruim. E todos quisemos fugir, mas já o lodo e o medo nos tinham envolvido e paralisado.
Quanto tempo se passara? Vá lá se saber... Um minuto, uma hora, um mês?
Por fim voltou a eletricidade. O rádio começou a tocar um fandango endiabrado, acompanhado por pratos, guizos e uns sons guturais que pareciam de cuíca, mas talvez fossem de alguém a agonizar, pensei.
Tentando tranquilizar-me, abracei-me e ninei-me como a um filho. Nesse enlace, encontrei a pregadeira com que me enfeitara para sair, e com ela abri um pequeno rasgo no manto que me tolhia os movimentos.
Com os olhos embaciados de frio e lágrimas, apercebi-me de que nos transformáramos em casulos, espalhados pelo chão. Mesa, cadeiras, móveis, tudo estava amontoado a um canto, na maior desordem. Espalmado contra o vidro da janela estava o gato.
Esta visão encheu-me de terror. E creio que desmaiei.
Fui sacudida do meu torpor pela sensação estranha de estar flutuando. Desaparecera o frio e meu corpo podia mover-se à vontade dentro daquele invólucro. Ruídos de vento e mar fizeram-me pensar em verdes campos e doces praias da minha infância.
– Que pesadelo eu tive! – exclamei. Mas não reconheci minha voz. Toquei meu rosto e não era mais ele, nem meu gesto me pertencia já.
Eu me distanciava de mim, mas meu pensamento ainda era eu. Eu, sem peso nem medidas. E sem espelho, para saber se meu estado era líquido ou gasoso.
Ouvi alta e inquietantemente perto uma voz áspera, que me lembrou de meu professor de latim. Não compreendi aqueles sons que me atingiram fazendo vibrar o casulo, minha casca-casa-prisão, pondo-me a rolar pelo soalho. Tão leve eu estou, pensei. Ai de mim, que de mim não sei.
Novo turbilhão de palavras, agora acompanhado de terra e flores, aumentou o meu desnorteamento. Senti o cheiro do perfume de minha mãe e quis gritar por ela. Ela, tão diferente dela, de preto vestida e amparada por outras mulheres. Porquê todas iguais? E velhas? Uma grande tristeza e compaixão me tomaram. E chorei por todos nós.
– Juntem o gato – alguém disse baixinho. – Deolinda o amava tanto, andavam sempre juntos...
E assim fizeram.
Admirei-me do silêncio que nos envolveu, mas antes assim, talvez conseguisse dormir. Quem dorme, esquece, e no esquecimento não há dor. Se ao menos houvesse luz, mesmo fraca, ficaria menos infeliz.
Então senti que algo se movia a meu lado, e um suave calor me envolveu. Malaquias, meu gato de sete vidas, estava ali bem junto a mim.
Olhamo-nos através do escuro, ambos surpresos de nossa condição. Seus olhos brilhavam como um farol, iluminando meu desespero, mostrando-me um caminho. E, pelo espanto de suas pupilas dilatadas, eu entrei sem medos.
E foi sem medos que saltamos por entre terra e flores para fora do túmulo, e começamos uma nova vida.

Eugénia Tabosa
2010