27 outubro 2009

C-008 - O MENINO QUE NASCEU DE UM OVO



Era uma vez um menino que nascera de um ovo duma galinha pedrês.
O menino não era amarelinho, nem tinha penas, nem bico como seus irmãos de ninhada, era mesmo um menininho carequinha e rosado. Em comum tinham a boca sem dentes e os olhos redondos.
- (Pensamento terrível: e se antes dele ter nascido o ovo tivesse sido cozinhado?).
A mãe galinha dava-lhe de comer, ensinava-o a esgravatar a terra e como devia esticar o pescoço depois de beber água. Quando se portava mal ou não obedecia, recebia amorosas bicadas, como qualquer pequeno pinto
Um dia o menino começou a falar em vez de piar. Foi um reboliço no galinheiro. Todos os pintainhos fugiram dele, a galinha pedrês cacarejava desesperada e os demais companheiros, o galo, a pata e o perú davam saltos e batiam as asas.
Então o menino ergueu-se, andou, abriu a porta de rede e foi-se para a vida. Cresceu e virou um rapazinho e depois um homem. Mas nunca dizia ter nascido de um ovo. Vergonhas...
----
Lisboa, 1950

C- 007- ERA UMA VEZ – (contava eu a minha filha):

Dona Joana Carochinha saiu. Era uma manhã cheia de flores e as estrelas à muito que dormiam.

O sol ainda não chegara, havia um lago a meio do caminho onde ele gostava de se olhar e por vezes esse olhar era tão longo que os dias ficavam cinzentos e as nuvens choravam de sós.

A joaninha, como não fazia calor não levava chapéu nem sombrinha, ia leve e de corrida de flor em flor.

Falava-lhes baixinho com palavras redondas e pequenas.

As flores olhavam-na, escutavam, sorriam cheirosas e abanavam as cabeças.

Então ela lá voava para outro tufo de flores e outro e outro, mas todas continuavam a acenar que não, acabando algumas por se fechar, outras a se encobrir com folhas e até umas poucas a enfiar o nariz no chão na maior das tristezas!

Desanimada, ainda menor na sua capa vermelha de bolinhas pretas, pousou por fim num bambu junto ao lago, mas longe da margem e das rãs. E chorou em silêncio.

Foi nisto que surgiu o Sol espreguiçando os raios por entre as nuvens que pareciam pássaros a esvoaçar.

E o jardim todo se iluminou, criou vida e sons e aromas. As flores só não dançavam de felicidade por terem nos pés os sapatos de terra.

Então o Sol viu Joaninha quieta, parada e sem sorrir como era costume quando ele aparecia. E quis saber o que se passava.

E ela contou:

- As flores eram tão lindas e ela gostava tanto, tanto delas que hoje resolvera perguntar se alguma quereria ir com ela morar. Mas a sua casinha era pequena, era aquele buraquinho no muro da hera... Então nenhuma flor do jardim lhe disse que sim, que teria muito prazer etc. etc., nem uma só quisera ir com ela viver!

O Sol disse que iria pensar e que no outro dia lhe traria flores pequeninas.

E assim foi...

Quando Joana Carochinha tornou a sair na manhã seguinte, depois de as estrelas à muito dormirem, chegou o Sol com um raminho de miosótis azuis.

----

Parede, 1960

23 abril 2009

MC 059 – Noite de cachaça

Noite de cachaça e vapor de gin, seguiu sonâmbulo o som da viola e cheiro a alecrim da nova amiga. Que susto de manhã bem a seu lado um cavalo sorria.

MC 058 – O amolador

O amolador passa na vila anunciando seu ofício, acompanhado pelo latido dos cães e desespero das lavadeiras com suas trouxas à cabeça: “Maldito sejas”

MC 057 - Carta de demissão

Debruçada sobre a carta de demissão, Ana as letras virarem formigas e correrem para o açúcar de seu café. Como tudo é relativo, pensa quase feliz.

MC 056 – Antero

Antero corre pra pegar o trem, casaco no ombro, pasta no braço e cinto na mão. Ouve risadas mas continua até que cai de rosto no chão e calça aos pés.

MC 055 – Balançando na corda

Balançando na ponta da corda, pé descalço, cabelo ao vento, o pintor caia prédio, árvores e passantes. Um pássaro, sobrevoa-o e pinga-o de branco.

MC 054 – Perdido de amores

Perdido de amores Caio pegou a viola e foi cantar à janela da bem amada. Mas ai, a tia solteirona saltou-lhe ao pescoço e até hoje não mais desgrudou.

MC-053 – No galinheiro

No galinheiro o velho galo contava as galinhas a suaves bicadas; o jovem galo saltava-lhes pra cima, quebrava ovos, e assim foi parar à mesa de Natal.

MC 052 - Sobre a cidade adormecida

Sobre a cidade adormecida uma estrela teimosa indicava o Sul. E foi assim que num sonho desnorteado o Infante Dom Henrique anteviu o Brasil.

12 abril 2009

A borboleta

Numa tarde de verão, inesperadamente uma borboleta entrou pela casa dentro deu voltas ás cegas e por fim a luz guiou-a para uma das janelas fechadas. Em vão tentava passar e desesperada debatia-se contra os vidros tentando sair. Ofereci-lhe a mão como ajuda mantendo-me parada e sem tentar tocar-lhe, mas ela estava demasiado assustada, só via a luz, as flores e as árvores tão próximas e inacessíveis. Por fim cansada e sem compreender o obstáculo invisível, parou de asas abertas como se delas viesse a força para transpor o vidro. Aproximá-mo-nos e podemos ver como era linda e delicada: - E sua vida é tão breve... cada minuto é precioso... E começamos a temer por ela. O nosso receio imediato era que ela voltasse para trás voando desesperada e os gatos a apanhassem. O perigo era mesmo o Julião que mantém bem vivo o instinto felino de caçador... Ágil salta, sobe às árvores, apanha os pássaros em pleno vôo. Listrado e de olhar vivo parece arraçado de lince; mas vive em paz com os gatos e o cão da casa e gosta que o chamem pelo nome. (É o meu gato preferido). A estratégia foi a Andréa levar os gatos para fora da sala, eles seguiram a dona que mal teve tempo de fechar a porta, deixando miados e protestos lá fora. Enquanto isso, e continuando de máquina fotográfica em punho, eu esperava ansiosa por sua rápida volta e ajuda. E no silêncio da casa sem ousarmos falar, chegamo-nos ainda mais perto. Então muito lentamente Andréa deslizou as mãos, pelo vidro até quase tocar na borboleta e esperou. E ficou imóvel e paciente aguardando. E foi assim. Como que acordando a borboleta estremeceu e voou para o aconchego daquelas mãos amigas que lhe pareceram confiáveis. Estendeu as patinhas e até parecia que nos olhava de lado. Mas surgiu novo problema: a janela era pesada, de guilhotina, estava fechada e eu queria tirar fotos e só com uma mão era impossível fazer as duas coisas. Por troca de sinais e risos, resolvemos ver até onde iria a confiança da borboleta, a nossa calma e habilidade. Aí trocamos de estratégia e papeis: eu ofereci - lhe a mão que não estava ocupada e, depois de alguma hesitação mas sem pressas a bichinha lá subiu, enquanto a Andréa abria a janela e tentando animá-la soprava levemente imitando carícias de vento.! Passaram-se uns minutos... Parecia que a borboleta estava a tomar fôlego para poder voar. E finalmente a liberdade. Mas na alegria e comoção de termos conseguido devolve-la à natureza nem nos lembramos de tirar fotos dela a voar em direção às árvores. Seguimos-lhe o vôo num silêncio cúmplice e feliz. Era linda e batendo as asas coloridas contra o azul do céu ela foi subindo, sumindo... E agora voltou nesta pequena história...

18 janeiro 2009

C 005 - UMA TARDE BUROCRÁTICA

A velha senhora chegou de olhar passivamente teimoso.

Sentou-se como se o tempo não mais contasse e esperou.

Era a quinta vez que ali vinha sem nada ser resolvido.

Quando finalmente foi atendida espalhou a papelada, fincou os cotovelos no alto balcão do Banco e declarou que não sairia sem estar o problema solucionado.

O relógio andava, os empregados conversavam e a velhinha sorria e esperava, engolindo a raiva.

O Banco já fechara, nem mais clientes havia.

Por trás dos computadores ouviam-se os teclados e a rodagem das máquinas de contar dinheiro.

O ar condicionado espalhou-se frio e silencioso pela enorme sala, apagando a lembrança do dia suado.

Sem ruído, no placar iam caindo os minutos.

Alguém tossiu no andar de cima.

Então rapidamente tudo foi fácil e, quase sem palavras se fez a transação.

Destrancaram a porta para ela sair

Cinco cabeças dez olhos e um enorme silêncio seguiram a velha senhora que acenou suavemente prometendo voltar em breve...

C-004 O ÚLTIMO AUTO DE FÉ EM PORTUGAL

Durante uma visita de estudo a Monsanto senti-me muito impressionada com a atmosfera geral da cidade e particularmente nesta rua e diante esta casa.

Deixei o grupo de professores meus colegas se afastar, para tentar compreender, ser só sentidos. E foi silêncio e o tempo como que parado e uma estranha sensação de perigo latente.

Bati a foto e saí quase correndo. Os meus amigos perguntaram se me sentia mal ao me verem tão alterada.

Dias depois, já em casa, lembrei-me duma antiga notícia de jornal em que era referido o último "Auto de Fé" em Portugal (1931). Em breves palavras lembravam como naquela vila aparentemente pacífica o povo queimara uma jovem acusada de bruxaria.

E aí eu revi a serra agreste, as casas de granito, fechadas como fechados e agrestes eram as mulheres de negro que encontramos. Não havia crianças nem risos, apenas o vento corria solto pela cidade trazendo os cheiros bravios da serra.

C 003 - AMOR INVULGAR

A cachorrinha perdera a cria, mal nascera logo lha tiraram.

Na casa havia uma gata, mas um carro passou e apenas um triste miado ficou chamando na cesta vazia.

E quase sem se dar conta, com curiosidade e medo a cadela chegou-se de mansinho aquela coisa berrenta. Não era como sua filha, tinha cheiro diferente, mas o olhar era igual e fácil de entender. E deitou-se a seu lado.

Quente, aninhada a gatinha mal nascida farejou as tetas onde o leite não secara. E muito naturalmente, porque uma precisava receber e a outra tinha o que dar, adotaram-se mutuamente.

Na casa houve espanto mas souberam respeitar.

E assim aqueles dois seres se amaram e entenderam sem problemas de classe.

A “mãe” aqueceu, alimentou e ensinou a brincar. Entendiam-se por gestos e nunca pelo ladrar. Não havia ratos nem coelhos por isso não precisavam caçar e ambas comiam de lata pois os donos não sabiam cozinhar.