Na casa em frente mora um cão rabugento. Corre e ladra até se engasgar impotente perante os cachorros que arrastam felizes os seus donos.
Se me falares te falarei, se me parlares te parlarei, se te calares não me calarei... Palavras alinhadas, alinhavadas, ora sérias ora tresloucadas
Na casa em frente mora um cão rabugento. Corre e ladra até se engasgar impotente perante os cachorros que arrastam felizes os seus donos.
Nos céus de São Paulo dois helicópteros pairam sobre a cidade enquanto uma garça, silenciosa e branca, voa veloz arrastando o meu olhar.
O gato, um olho aberto outro fechado, parecia ausente, Tia Micas estranhando o silêncio na casa correu para a gaiola onde já não havia canário...
Zizi, a boneca de minha Mãe, tinha rosto de porcelana, olhos azuis, laços no cabelo em cachos e os braços estendidos numa eterna espera de agrados.
Naquela primeira Primavera da vida do nosso cachorrinho, aconteceram-lhe coisas surpreendentes.
Ele tinha apenas três meses quando o meu filho Gustavo o levou para nossa casa, Sentia-se, estranho, friorento e nada mais queria que comida e carinhos.
Se um cachorro pode parecer um pardal assustado acho que era este o caso...
Demorou a explorar a casa e a descobrir a porta para o quintal.
O Inverno terminara, os dias começaram a ficar maiores e mais claros e parecia até que todos tinham vontade de cantar, brincar, desarrumar gavetas e fazer grandes limpezas... Até lhe deram outro caixote maior e uma almofada nova, grande e macia...
Repetiam-lhe tantas vezes a mesma palavra que acabou percebendo ser esse o seu novo nome: Gimbras.
Nessa altura já conseguia descer as escadas sem meter os pés pelas mãos, comer sem entornar o prato e se lambuzar todo e, o que muito lhe custava, ficar sentado esperando o sinal para saltar para o colo do dono.
Mas este momento ainda o deixava algo perplexo: porque seria que esse dono tão querido não se deitava também no chão e em vez disso o obrigava a pular, a pular até por fim se conseguir empoleirar em seus joelhos duros e só depois, e nem sempre, lhe deixava lamber os pêlos da cabeça mas nunca lhe mordiscar nem puxar as orelhas?!
Também já corria á desfilada pelo quintal e brincava de apanhar e trazer a bola.
Sim, agora estava feliz, sentia-se bem, já não tinha frio e a chuva leve e miudinha que por vezes ainda caía até era agradável e fazia sair da terra um aroma especial .
E foi então que se deu a primeira descoberta que o encheu de inquietação :
Uma manhã no tapete de erva verde e cheirosa, em cima de uma perna só, apareceu um ser branco que agitava umas quatro ou cinco asas. O cachorro contou-se a si próprio quatro pernas e uma linda cauda todas pretas e comparou: cinco também.
Mas aquele ser branco que não saía do mesmo lugar e aparecera assim de repente naquela manhã, era muito mais alto que ele e deitava um perfume desconhecido daquela cabeça emplumada.
Durante dois dias Gimbras, ladrou, avançou, recuou, saltou ao redor daquela coisa que lhe continuava delicadamente respondendo com acenos de vento.
A mulher-mãe-do-dono apareceu à janela da casa e gritava toda feliz: "Olha a Primavera ...Chegou ...chegou...Está um magnífico dia...E olha ali um Lírio... tão branquinho!... Está mesmo um dia magnífico ...”
Não sei se todo este barulho acordou o quintal mas logo surgiram da terra mais lírios brancos, logo outros amarelos e ainda outros roxos. O cachorro corria maravilhado de uns para os outros; dando os bons dias e ladrava e saltava-lhes à volta tentando chamá-los para brincar. Até que cansado, parava, olhava, sentava e esperava para de novo recomeçar com as cabriolas.
Mas dias depois nova surpresa veio animar sua vida:
Vindos do céu começaram a chegar aos bandos flores e mais flores... umas brancas, outras amarelas, azuis e castanhas, extravagantemente pintalgadas. Não tinham pés nem estavam presas às ervas.
Pareciam coisas loucas. Agitavam os braços-asas, davam voltas, subiam, desciam cheiravam as flores do chão e só não pousaram nele certamente pela protecção do seu casaco de peles e pelos saltos e latidos com que as recebeu.
Vinham cedo com o sol e à tardinha assim que escurecia desapareciam sem se saber para onde.
Por fim começou a achá-las engraçadas e acabaram brincando às escondidas. Mas era difícil ficar quietinho fingindo de morto para depois dar o salto e fazê-las fugir bate-que- bate, azinhas-me-salvem.
Ele ficava a vê-las voar e não podia deixar de sorrir pelo susto que lhes pregara. Agora já sabia que elas se chamavam borboletas. Boas de ver mas não de comer.
A propósito de comer... seus dentes continuavam afiados mas agora eram fortes e os tapetes e as madeiras tomavam novas formas e multiplicavam-se espalhados por todo o quintal.
Este seu lado artístico não foi apreciado pelo seu dono e ainda menos pela Avó Olívia, a senhora mais velha, a que morava do outro lado do muro, Ai! como ela que se fartou de falar, gesticular... Que susto levou quando a viu de vassoura na mão...
Juntaram seus belos trabalhos e meteram tudo num saco:
-- “Lixo... só lixo.... que vergonha seu Gimbras!!! “
Outra descoberta surpreendente aconteceu uns tempos depois quando chegou o verão e com ele aquelas claras e longas noites de luar que lhe traziam a vozes e cheiros dos cachorros das redondezas:
Sem saber como, sentiu sair de sua garganta um longo som que parecia vindo do mais fundo de si próprio... subia, descia, vibrava, ondulava !
Experimentou algumas variantes que achou simplesmente belas.
E assim se iniciou naturalmente no canto coral esmerando-se nos solos agudos.
Isto deu-lhe um enorme prazer mas também problemas com pessoas da vizinhança que tentavam berrar mais alto que ele e ainda lhe atiravam água ( daquela de beber... não da de marcar território ). Felizmente a almofada ficava dentro da casota e eles não a conseguiam atingir...
Depois foi a época de correr atrás dos pássaros que vinham debicar a fruta, e a dos gatos que do alto dos muros saltavam para as árvores tentando pegar os pássaros e sem vergonha lhe faziam caretas, miavam e assopravam mas sem chegarem perto de si, com medo de seus dentes e latidos.
Foi então que percebeu mudara de voz.
Que coisa estranha.e medonha... De peito inchado arremeteu contra o desconhecido e por pouco não mordeu a própria cauda...
Maravilhado percebeu que o rosnar, embora mais abafado e menos barulhento que o ladrar tinha um excelente efeito nos gatos, pássaros e até sobre as pessoas.
Também conseguia saltar mais alto, muito alto mesmo.
E finalmente um dia começou a “construir” buracos na terra. Escavar!!!
A sua primeira obra de engenharia foi um túnel para o quintal da vizinha
Foi uma grande vitória alargar assim seu território, correr com os gatos e farejar metodicamente este novo espaço até então inacessível.
Está-se mesmo a ver que isto lhe trouxe mais uma vez ralhos, gritos, água e até pedradas...
Mas terrível era o frio que sentia, quando por cima do muro apareciam faiscando, ameaçadores, os olhos de vidro da senhora do pelo encaracolado e branco.
Sim, podia até cheirá-la nos dias em que ela ficava escondida do lado de lá gritando para o lado de cá... Palavras, ai tantas palavras... era uma senhora muito culta, sabia mesmo muitas palavras... (O que seria isso de “besta quadrada” ou bad-black-dog?!)
Mas ela não sabia saltar o muro, nem sequer conseguia escavar um caminho até ele!
Com essa certeza e sentindo-se finalmente “dono do pedaço”, meticulosamente lá foi demarcando o quintal, de perninha ao lado e nariz no no ar, enquanto a olhava orgulhoso com seus pequenos e redondos olhinhos cor de mel.
Mais seguro de si e feliz da vida, Gimbras descobriu os prazeres de brincar com a sua almofada “americana”. ( Devo confessar que fui eu que a comprei, .foi irresistível ao imaginar o cão preto deitado na bandeira ...)
Nunca pensei no quanto e como essa resistente almofada se tornaria num brinquedo tão apreciado e querido.
E ele corria, fintava e atirava-a ao ar, corria e voltava, saltava, trepava e cavalgava alegre, tonto, sem ver flores nem couves, até embater nalguma árvore e cansado do novo jogo, adormecer ternamente a ela abraçado.preparando-se para novo, frenético e estimulante exercício.
Pensando agora nisso, acho que foi por essa altura que os nossos vizinhos, debruçados das janelas atentos e carinhosos o começaram a presentear com pedacinhos de carne, ossos com tutano e, ternurentos ainda animavam o Gimbras comentando:
--“Ai que lindinho!...olhem só como é alegre ... e tão engraçadinho !!!”
E assim se passaram os primeiros anos da vida do nosso cachorrinho.
Três sapos sentaram a coaxar junto à porta de Maria,
Grumilde adormeceu frente à TV, era campanha eleitoral. Ouvindo palmas e gritos, corre, dá uma bofetada no filho, tropeça no gato e insulta a vizinha
Antão levantou tarde e dorido naquele domingo morno de Verão. Olhou a barba malsemeada, a meia rota,o cigarro caído na pia... Voltou para a cama
Sentou-se como se o tempo não mais contasse e esperou.
Era a quinta vez que ali vinha sem nada ser resolvido.
Quando finalmente foi atendida espalhou a papelada, fincou os cotovelos no alto balcão do Banco e declarou que não sairia sem estar o problema solucionado.
O relógio andava, os empregados conversavam e a velhinha sorria e esperava, engolindo a raiva.
O Banco já fechara, nem mais clientes havia.
Por trás dos computadores ouviam-se os teclados e a rodagem das máquinas de contar dinheiro.
O ar condicionado espalhou-se frio e silencioso pela enorme sala, apagando a lembrança do dia suado.
Sem ruído, no placar iam caindo os minutos.
Alguém tossiu no andar de cima.
Então rapidamente tudo foi fácil e, quase sem palavras se fez a transação.
Destrancaram a porta para ela sair
Cinco cabeças dez olhos e um enorme silêncio seguiram a velha senhora que acenou suavemente prometendo voltar em breve...
Ofereci-lhe a mão como ajuda mantendo-me parada e sem tentar tocar-lhe, mas ela estava demasiado assustada, só via a luz, as flores e as árvores tão próximas e inacessíveis.
Aproximamo-nos e podemos ver como era linda e delicada: - E sua vida é tão breve... cada minuto é precioso...
E começamos a temer por ela.
O nosso receio imediato era que ela voltasse para trás voando desesperada e os gatos a apanhassem. O perigo era mesmo o Julião que mantém bem vivo o instinto felino de caçador... Ágil salta, sobe às árvores, apanha os pássaros em pleno vôo. Listrado e de olhar vivo parece arraçado de lince; mas vive em paz com os gatos e o cão da casa e gosta que o chamem pelo nome. (É o meu gato preferido)
Enquanto isso, e continuando de máquina fotográfica em punho, eu esperava ansiosa por sua rápida volta e ajuda.
E foi assim. Como que acordando a borboleta estremeceu e voou para o aconchego daquelas mãos amigas que lhe pareceram confiáveis. Estendeu as patinhas e até parecia que nos olhava de lado.
Por troca de sinais e risos , resolvemos ver até onde iria a confiança da borboleta, a nossa calma e habilidade.
Aí trocamos de estratégia e papeis: eu ofereci - lhe a mão que não estava ocupada e, depois de alguma hesitação mas sem pressas a bichinha lá subiu, enquanto a Andréa abria a janela e tentando animá-la soprava levemente imitando carícias de vento.!
E finalmente a liberdade.
Mas na alegria e comoção de termos conseguido devolve-la à natureza nem nos lembramos de tirar fotos dela a voar em direção às árvores.
Seguimos-lhe o vôo num silêncio cúmplice e feliz. Era linda e batendo as asas coloridas contra o azul do céu ela foi subindo , sumindo...
E agora voltou nesta pequena história...
No seu mundo tranquilo os peixes deslizam nas águas do lago, onde o céu parece também querer mergulhar.
Toninho Cardoso era um menino chato. Vivia de levantar a saia às meninas no recreio. Um dia fizemos uma roda e ele no meio.
Acompanhada do Pai e da marcha nupcial a noiva chega enfim ao altar. Mas alérgica às flores, ela espirra deixando o véu opaco e o noivo a vomitar.
Era uma mulher de braço forte e pegava no trabalho ao nascer do Sol. Tinha duas filhas, loirinhas e o marido mandrião que ficava exausto de a barbear.
Zé Cigano espera com os cinco filhos que a mulher acabe de parir. Quando a comadre grita “Gémeos” Zé desvairado tenta meter o último de volta ao útero.
Um grupo de árvores, casacos de neve vestidos, espera o anoitecer para ir à Ceia de Natal.
MC 030 – Suspiro
Tomé afastou a feijoada onde dois ovos o olhavam lembrando a galinha roubada à vizinha que saíra gritando pelada a meio da noite. Belos ovos, suspirou!
Arranjando as unhas do deputado recém eleito, Betinha sonha com praias e palmeiras enquanto sorri promissora, tentando esquecer a verruga no nariz.
A ambulância corria louca pela cidade gritando passagem. O balão de soro seguiu o ferido porta fora naquela noite de luar.
Elegante D.Ema rege, batuta em punho, o orfeão da escola. No gesto largo o colar de pérolas solta-se como lágrimas. As alunas festejam a aula acabada.
O mendigo esticou a perna e fez cair D. Amélia sobre o cão que ganindo saltou sobre o pedinte, espalhando o ganho do dia pela rua. Ela seguiu feliz
Abriu as janelas, retirou os panos que cobriam o espelho, sentou-se ao piano jogando o cabelo para trás e tocou um Alegro ma non tropo.
Depois de pintar as sobrancelhas ralas, Dona Aurélia traçou na cabeça um risco ao meio e chamou a criada para lhe emprestar as tranças.
De noite, sozinho na cama, ele sonhava que subia, descia e se perdia entre luxuriantes montes de Montes de Vénus.
A mulher careca, escolheu a sua mais deslumbrante e loira peruca passou baton e rimel e foi assistir ao velório da amiga.
Casa abandonada, poucas pessoas a olham de frente, apressam o passo como diante da Velha que nem estende a mão, apenas está, dentro de seu passado.
Um sussurro, um bater de asas e sobre o muro surge altivo e belo um pavão. Azul profundo único, brilhante. Oh presença mitológica dos mil olhos...
Já não há amoras bordejando o caminho nem o ranger dos carros de bois, mas nos muros de pedra-solta vestidos de musgo há histórias antigas a murmurar.
O céu estava tão azul e havia tanto verde à volta que aquela velha árvore de braços negros erguidos tinha a força de um grito, como se fora um aviso.
Levaram todo o ano a trabalhar, a juntar dinheiro para umas férias na praia.
Por fim chegados, sentaram-se num banco da estrada de costas para o mar
Último dia de aulas, silêncio, paz.
O pardal deu três saltos e apanhou a lagarta.
O vento fez a velha cair nos braços dum jovem modelo que se olhava na vitrine.
Dona Luísa falando ao telefone olhava-se no largo espelho da sala e suas conversas por vezes paravam suspensas no gesto de se alindar.