Seu Raimundo e a Bola
Ele era tarado por um joguinho de bola.
Já em
criança, lhe
bastava uma meia cheia
de terra, um terreno plano,
e lá ia ele
feliz, fazendo fintas
a imaginários adversários.
No emprego, um ouvido no rádio
seguindo qualquer relato , um olho no trabalho, cuidando fazer o mínimo necessário, era amigo de todo mundo, mas diziam que em dia de copa ele não dava bola para ninguém,
Em casa, a mulher
reclamava de sua obsessão
por tudo
que era
redondo e podia rolar.
As laranjas, maçãs
e até os novelos
de lã do seu
tricô não
tinham sossego nos
pés do
Raimundo.
Isto sem falar dos protestos
dos filhos, principalmente
do Mundinho, que achava que o pai não tinha mais idade para brincar aos domingos com a
molecada, na rua.
E ele sorria, encolhia os ombros
e, como que
se desculpando, dizia que era coisa de nascença, de família,
e lembrava o tio que
jogara sinuca até
o reumatismo o prender
à cama. Esse,
quase casara, mas
a noiva deu de cismar
quando lhe
contaram que ele
dormia com uma bola
por travesseiro
e um cobertor
verde.
Tudo corria assim mais ou menos bem, quando lhe
ofereceram um curso
de computação na compra
dum cortador de papel, uma máquina
de imprimir e um
computador antigo,
em suaves
prestações mensais.
E durante uns tempos
aquele computador
foi uma coisa que
trouxe grande tranquilidade e harmonia à casa
e à vida de todos.
Até que, como se diz na dialéctica, a quantidade
muda a qualidade,
Raimundo foi promovido, comprou um computador portátil, e
passou a estar “ligado” as 24 horas
do dia, e tendo acesso
ilimitado a todos os canais de informação
descobriu sua real
vocação: divulgador
das virtudes da Bola.
Entrou
nessa tarefa de corpo
inteiro, cheio
de entusiasmo e fé,
como se de uma missão
se tratasse, não tardando a perceber quão vasto era o potencial daquele tema.
E, literalmente falando, ele correu atrás
da bola e percorreu o mundo.
Viu estádios, comparou equipes,
decorou o nome de jogadores
e árbitros. Sabia das dimensões dos campos,
formato e histórias
de traves, redes,
bolas, apitos,
até da grama
verde ele
sabia algumas coisas.
Comprou
livros sobre
o assunto, e óculos
de médio alcance
com aros
de tartaruga que
lhe deram um
ar entendido
e lhe deram outro
estatuo na vizinhança.
Seu Raimundo sentiu necessidade
de falar, dividir todo este conhecimento, não
ficando reduzido apenas à casa, ao café ou ao seu local de trabalho. Não que tivesse
achado pequeno
interesse da parte
dos ouvintes, pelo
contrário, todos
lhe passaram a dar
a maior atenção
e respeitavam seus conhecimentos.
Foi convidado pelo patrão para a sua casa de campo, não uma,
mas várias vezes.
Pode-se
dizer que ele alargou o campo
de sua vida.
Tudo graças
à bola. E com
isso mais
o seu entusiasmo
crescia, redobrava.
Uma noite, quase madrugada, teve um
sonho revelador:
- Deus criara o mundo
na forma de uma bola
e corria pelos céus
jogando com um
bando de arcanjos
e querubins. O campo
de nuvens mudava constantemente
de figura, o que,
com as vestimentas
dos jogadores tornava o jogo imprevisível e cheio de quedas
e empurrões. Numa dessas escorregadelas Deus irado chutou para fora do campo,
tendo essa bola-mundo despencado por aí a baixo,
caindo no Palácio do Governo
quase atingindo o mastro
da bandeira.
Acordando
sobressaltado refletiu e maravilhou-se
com o poder da
mente humana,
e de como eram possíveis
grandes descobertas
mesmo dormindo. Assim
o mundo avança.
E porque
não?, pensou alto. É aí mesmo que ela deve estar! Bem no meio de todo aquele campo verde, a flutuar ao som do Hino Nacional.
Decidiu
então que
seria deputado, senador,
governador talvez.
Poderia assim cumprir sua missão, seria um
membro do estado
e não apenas
uma peça sem
valor. Sua
voz seria ouvida
e a sua opinião
atingiria outros, levando, quiçá, a nação toda em peso a exigir essa sua proposta de
modificação.
Sempre optimista e determinado,
lançou-se nessa jornada tendo reunido vários adeptos em pouco tempo, Fez conferências,
foi a grandes jantares
e convívios por
todos os cantos
do país. Foram inúmeros as iniciativas e projetos
que apadrinhou. Abriu concurso
para um museu com tema e forma de bola rodeado de belos
prados extensos.
E, a exemplo do que
já havia em
Portugal, fundou o jornal “A Bola” que também aqui rápidamente se tornou numa espécie
de Biblia nacional, presente
em todas as casas
e lido nos transportes
e no trabalho.
Contribuiu
assim para o combate ao analfabetismo e à integração
plurialista na sociedade
e, como é indispensável
assinalar, ao desporto
como um
todo e em
particular.
Ouvi dizer à pouco que Raimundo
tinha sido proposto para
receber um
prémio de benfeitor da humanidade, pela
divulgação, desenvolvimento
e interesse por
este tema
de indiscutível e mundial interesse.
Porém o que nunca conseguiu, foi concretizar
aquele sonho
lindo, e ver a
a sua amada
bola envolta
em seda
verde, flutuando ao vento,
acompanhada pelo som
do Hino Nacional.
Eugénia
Tabosa
2010