Era uma vez Deolinda
Noite sem lua,
os sons tinham perdido seu sentido, e do vento sabíamos apenas porque as
sombras se moviam. Parecia que o tempo
parara. Alguém disse: Tempo de fantasmas.
Sim, é de não sair nem a porta abrir.
E só meios sorrisos responderam.
Malaquias, o
gato, eriçou o pelo e gemeu. No mesmo instante, faltou a luz e bateram à porta.
Quem pode ser? Estamos todos aqui! E
ninguém se moveu.
Sem ruído, uma
mancha escura, como vinho derramado, esgueirou-se, porta adentro, pelo buraco
da fechadura. Cruzes, te arrenego, vai-te
coisa ruim. E todos quisemos fugir, mas já o lodo e o medo nos tinham
envolvido e paralisado.
Quanto tempo se
passara? Vá lá se saber... Um minuto, uma hora, um mês?
Por fim voltou
a eletricidade. O rádio começou a tocar um fandango endiabrado, acompanhado por
pratos, guizos e uns sons guturais que pareciam de cuíca, mas talvez fossem de alguém a agonizar, pensei.
Tentando tranquilizar-me,
abracei-me e ninei-me como a um filho. Nesse enlace, encontrei a pregadeira com
que me enfeitara para sair, e com ela abri um pequeno rasgo no manto que me
tolhia os movimentos.
Com os olhos
embaciados de frio e lágrimas, apercebi-me de que nos transformáramos em
casulos, espalhados pelo chão. Mesa, cadeiras, móveis, tudo estava amontoado a
um canto, na maior desordem. Espalmado contra o vidro da janela estava o gato.
Esta visão
encheu-me de terror. E creio que desmaiei.
Fui sacudida do
meu torpor pela sensação estranha de estar flutuando. Desaparecera o frio e meu
corpo podia mover-se à vontade dentro daquele invólucro. Ruídos de vento e mar
fizeram-me pensar em verdes campos e doces praias da minha infância.
– Que pesadelo
eu tive! – exclamei. Mas não reconheci minha voz. Toquei meu rosto e não era
mais ele, nem meu gesto me pertencia já.
Eu me distanciava
de mim, mas meu pensamento ainda era eu. Eu, sem peso nem medidas. E sem
espelho, para saber se meu estado era líquido ou gasoso.
Ouvi alta e
inquietantemente perto uma voz áspera, que me lembrou de meu professor de latim.
Não compreendi aqueles sons que me atingiram fazendo vibrar o casulo, minha
casca-casa-prisão, pondo-me a rolar pelo soalho. Tão leve eu estou,
pensei. Ai de mim, que de mim não sei.
Novo turbilhão
de palavras, agora acompanhado de terra e flores, aumentou o meu desnorteamento.
Senti o cheiro do perfume de minha mãe e quis gritar por ela. Ela, tão
diferente dela, de preto vestida e amparada por outras mulheres. Porquê todas iguais? E velhas? Uma
grande tristeza e compaixão me tomaram. E chorei por todos nós.
– Juntem o gato
– alguém disse baixinho. – Deolinda o amava tanto, andavam sempre juntos...
E assim
fizeram.
Admirei-me do
silêncio que nos envolveu, mas antes assim, talvez conseguisse dormir. Quem
dorme, esquece, e no esquecimento não há dor. Se ao menos houvesse luz, mesmo
fraca, ficaria menos infeliz.
Então senti que
algo se movia a meu lado, e um suave calor me envolveu. Malaquias, meu gato de
sete vidas, estava ali bem junto a mim.
Olhamo-nos
através do escuro, ambos surpresos de nossa condição. Seus olhos brilhavam como
um farol, iluminando meu desespero, mostrando-me um caminho. E, pelo espanto de
suas pupilas dilatadas, eu entrei sem medos.
E foi sem medos
que saltamos por entre terra e flores para fora do túmulo, e começamos uma nova
vida.
Eugénia Tabosa
2010
2010
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