18 janeiro 2009

C 005 - UMA TARDE BUROCRÁTICA

A velha senhora chegou de olhar passivamente teimoso.

Sentou-se como se o tempo não mais contasse e esperou.

Era a quinta vez que ali vinha sem nada ser resolvido.

Quando finalmente foi atendida espalhou a papelada, fincou os cotovelos no alto balcão do Banco e declarou que não sairia sem estar o problema solucionado.

O relógio andava, os empregados conversavam e a velhinha sorria e esperava, engolindo a raiva.

O Banco já fechara, nem mais clientes havia.

Por trás dos computadores ouviam-se os teclados e a rodagem das máquinas de contar dinheiro.

O ar condicionado espalhou-se frio e silencioso pela enorme sala, apagando a lembrança do dia suado.

Sem ruído, no placar iam caindo os minutos.

Alguém tossiu no andar de cima.

Então rapidamente tudo foi fácil e, quase sem palavras se fez a transação.

Destrancaram a porta para ela sair

Cinco cabeças dez olhos e um enorme silêncio seguiram a velha senhora que acenou suavemente prometendo voltar em breve...

C-004 O ÚLTIMO AUTO DE FÉ EM PORTUGAL

Durante uma visita de estudo a Monsanto senti-me muito impressionada com a atmosfera geral da cidade e particularmente nesta rua e diante esta casa.

Deixei o grupo de professores meus colegas se afastar, para tentar compreender, ser só sentidos. E foi silêncio e o tempo como que parado e uma estranha sensação de perigo latente.

Bati a foto e saí quase correndo. Os meus amigos perguntaram se me sentia mal ao me verem tão alterada.

Dias depois, já em casa, lembrei-me duma antiga notícia de jornal em que era referido o último "Auto de Fé" em Portugal (1931). Em breves palavras lembravam como naquela vila aparentemente pacífica o povo queimara uma jovem acusada de bruxaria.

E aí eu revi a serra agreste, as casas de granito, fechadas como fechados e agrestes eram as mulheres de negro que encontramos. Não havia crianças nem risos, apenas o vento corria solto pela cidade trazendo os cheiros bravios da serra.

C 003 - AMOR INVULGAR

A cachorrinha perdera a cria, mal nascera logo lha tiraram.

Na casa havia uma gata, mas um carro passou e apenas um triste miado ficou chamando na cesta vazia.

E quase sem se dar conta, com curiosidade e medo a cadela chegou-se de mansinho aquela coisa berrenta. Não era como sua filha, tinha cheiro diferente, mas o olhar era igual e fácil de entender. E deitou-se a seu lado.

Quente, aninhada a gatinha mal nascida farejou as tetas onde o leite não secara. E muito naturalmente, porque uma precisava receber e a outra tinha o que dar, adotaram-se mutuamente.

Na casa houve espanto mas souberam respeitar.

E assim aqueles dois seres se amaram e entenderam sem problemas de classe.

A “mãe” aqueceu, alimentou e ensinou a brincar. Entendiam-se por gestos e nunca pelo ladrar. Não havia ratos nem coelhos por isso não precisavam caçar e ambas comiam de lata pois os donos não sabiam cozinhar.

25 setembro 2008

MC-051- Deitada no prado

Deitada no prado a égua branca sente na carícia do vento odores de Verão. Algures, um cavalo negro se empina pleno de liberdade. Comunicação sem fios.

24 setembro 2008

MC-050 – Frente ao computador

Frente ao computador Rita esquece horas e jantar. Adormecida sobre o teclado sonha-se a recoletar letras e imagens ao som da Marcha Turca de Mozart.

MC-049 – O menino da casa em frente

O menino da casa em frente passava os dias batendo tambor. Jurei que daria um a meu filho quando nascesse. E assim foi. E mais uma gaita e um pandeiro

MC-048 – A passos largos

A passos largos fugindo da chuva e evitando as possas de água, Abel esbarra na velha tia que cai pernas ao léu sem compostura nem perdão. Negra visão.

MC-047 – Deitada na areia

Deitada na areia vi meus dedos, cada um com sua cor, percorrendo o céu de lés a lés. Que lindo arco íris nasceu.

MC-046 – O baile

Na pressa de ir para o baile a prima Judith calçou um sapato preto outro castanho. Passou toda a noite sentada com os pezinhos debaixo da cadeira.

19 março 2008

C-002 - A Velha

Era uma vez uma velha, velha, mas velha mesmo.

Sentou-se à porta a ver passar os dias e as pessoas correndo.

Uma vizinha deu-lhe um pão e outra um cobertor.

Passou um senhor de chapéu e gravata que desviou o olhar cofiando o bigode.

O sol chegou de mansinho e aqueceu-lhe os pés deformados enfiados nas chinelas do pano das calças de seu falecido e muito amado marido.

Um burro que passava carregado de fruta e com um chapéu de palha donde saiam grandes orelhas, parou e ficou a fazer-lhe companhia dando-lhe algumas das moscas que desde manhã se deliciavam nas remelas dos seus olhos.

O dono do burro saiu da taberna tentando sentar-se no pouco espaço livre entre a fruta, mas o filho mais rápido que gato ocupou esse lugar. Ele chamava-se Abel, o filho, e o pai Antão e o burro não sei, porque ele não disse nada, só zurrou.

Sim acho que seria esse o nome porque a velha gritou: ¨Sózurras cheiras mal... Dá-me uma maçã! ¨

Rápido, Abel atirou uma maçã que acertou direitinho na barriga flácida e vazia daquela que poderia e talvez tivesse sido a avó de toda a Vila. A maçã rolou pela saia que lhe tapava as pernas de escrivaninha, deteve-se nos joanetes como se esperasse ser agarrada mas como nada aconteceu, continuou rolando e chegou perto do Sózurra que a comeu sem mastigar.

Todos se calaram porque nada havia a dizer.

A Velha fechou os olhos cansados e lembrou quando era jovem e as árvores tinham maçãs e ela bons dentes.

Um sino longe avisou o fim do dia.

Homem, rapaz e burro, sobressaltados tomaram o caminho de casa.

As janelas começaram a ser fechadas e a vizinha ainda chamou: ¨Oh senhora, vai escurecer e está esfriando! Vá para casa, criatura!¨

Dona Quitéria, assim era o nome da velha: Quitéria de Menezes Sebastiana olhou na direcção do chamado, e fitou surpreendida as Sardinheiras que a chamavam.

E pensando no burro, no rapaz, na maçã e agora nas flores que gritavam, encolheu-se no xale roxo, perfumado na alfazema da arca e refletiu em como a vida estava estranha e modificada.

Sem dúvidas, nem mais reparos, suspirou e olhou para o outro lado.

A estrada apagava-se antes da última casa.

Porque teria desaparecido a estrada se a casa da prima Elvira, (amarela, a casa e a prima), ainda lá estava. A prima já não. Fora-se no último Inverno.

Não este ano, mas no último já passado, o lembrado, porque o seu finado Sebastião também se tinha ido. Apagado. Ele sempre fora uma pessoa calada, quase nunca se dava por ele, não incomodava ninguém. E a velha lembrou o candeeiro de petróleo, o cheiro de arnica e depois o grande silêncio que ficou na casa. Apagado, acabado, enterrado...

Dona Quitéria levantou-se a custo e dobrada.

E mais dobrada ficou ao entrar na casa.

O ar da casa era pesado, não pelo cheiro de carvão ou por recordação de cozinhados.

Era pesado, como as janelas eram estreitas, os bancos duros e o chão ondulado.

Sempre fôra assim, por isso tão agradável era estar sentada do lado de fora, junto à porta semi-serrada.

Fechou os olhos para melhor se orientar e, com os dedos nodosos e trémulos percorreu a parede, a mesa e encontrou a cadeira que sustinha a cama da perna partida.

Nem para isso seu Sebastião lhe servira. Sempre calado mas cheio de bagaço que o frio desse grande Inverno desculpava, atirara um pontapé na cadela e os dois, ele e a cadela, derrubaram a cama. Até que foi bem feito. Pena que não foi a perna dele que quebrara, que Deus a perdoe... Gemera seu Sebastião, ganira a cadela.

E como um mal não vem só, o candeeiro apagou e D. Quitéria tivera que ir pedir ajuda e luz.

Havia muitas velas na Igreja, mas ficava longe e o Prior tinha saído para benzer um senhor da casa grande, a de pedra de granito.

Áquela hora deviam estar todos a comer na grande cozinha, que os senhores não gostavam do salão.

Além de não se ouvirem quando falavam, tão comprida era a mesa, a cera das 50 velas do candeeiro por vezes derretia e caía na comida ou, como até acontecera um dia, ainda seu terceiro marido era vivo e primo em não sei que grau dos senhores, que por via desse mesmo parentesco tinham feito a gentileza de os deixar assistir ao repasto, a cera derretida caíra bem na coroa do antigo prior.

E este que não era homem de poucas falas, logo ali disse tantas e tão poucas que todos se levantaram da mesa e nunca mais houve janta no salão.

Ainda era viva a Dona Menina Josefina que Deus tenha em sua glória e sossego. Bem merecido, que ela era uma santa e todas a sobras da farta mesa iam para a Casa da Roda e não queria saber de as dar aos porcos.

Que a morte lhe seja leve e os anjos a acompanhem...

Só de lembrar tanta fartura um fio de saliva escorreu por uma das rugas do magro queixo.

Ai aquela boa senhora!... Não que ela não apreciasse carne de porco, salgada ou em banha, mas porco é porco. Se os deixarem soltos eles lá encontram que comer, que os narizes são próprios para até desenterrarem raízes. Se toda a gente tivesse assim tão boa boca, não haveria fome.

O senhor Salazar lá de Lisboa explicou isso muito bem: A fome é o produto da gula.

O que está à mão come-se e se não está semeia-se.

Além de que ser magro é próprio de pessoa fina e poupa-se no vestir.

É só ver como eles deixaram de usar suspensórios e só usam cinto.

Pois chamem-lhe parvos ou doutores, o cinto diminui o estômago e escusado será dizer que a fome fica logo pela metade.

Será por isso que os senhores da casa grande e os amigos de Lisboa não arrotam nem ventam.

Que educação não é só nas palavras...

E a Velha lembrou, oh se lembrou aquele jantar em que não se chegou a comer o conduto quanto mais os doces! ... "Barrigas de freira".

Nunca percebeu o nome nem o gosto desse doce. Vai ver que era pecado, e vai ver daí que foi mesmo por isso que as velas derreteram e como lágrimas de fogo caíram no gordo Prior.

Ele não usava cinto por causa da batina e por isso mesmo tinha de comer muito.

A criada desse Prior contara na mercearia que se o Prior ficava mal comido, as calças lhe caiam.

Dizia mais umas coisas mas isso agora não vem ao caso.

O caso foi das velas, da luz que faltou, da prima que se finou, do Sebastião que gemia e a cadela que gania.

E para quê lembrar isso tudo agora?!

De Deus devemos esperar tudo: os bens, os males, secas e as chuvas e o que mais a ele por sua altíssima recreação lhe aprouver enviar.

A cama tinha a perna partida e isso é que era importante… Lembrar, para sentar de mansinho e se deixar escorregar para o outro lado.

Há males que vêm por bem. Quando abriram o poço da casa ao lado, o terreno afundou um pouco e com tanta sorte que o chão inclinou e agora quando se vai deitar é só um jeitinho e logo escorrega para o lado seguro.

Difícil era levantar, tinha que ser muito cautelosa. Mover-se como as lagartas nas couves do quintal.

Tudo questão de prática.

Aprende-se muito com os animais. Eles lá sabem... e não precisaram olhar nos livros.

E agora, pensando bem, também o facto de ter ficado sem candeeiro era menos preocupações no apagar e na despesa... Sim, porque além de dar menos luz, que nem dava para enfiar uma agulha, o petróleo que os senhores do Busque-o-partam vendiam andava pelo peso de ouro. Uma vergonha!

Mas amanhã havia de nascer o Sol, se fosse caso disso... nunca sabemos o que esperar. Que isto de Sol e de Lua só nos tempos antigos tinham leis e horários... Agora com as modernices cada um faz o que lhe dá na real gana. Haja o caso do “eclipste” do outro ano. Os melros calaram-se e os mochos afinaram a goela. Mas foi coisa de pouco tempo. O maior barulho foi dos ratos que não sabiam se era dia se noite , se hora de entrar ou sair dos esgotos e vai de correr dum lado para o outro. Até que teve sua graça...

E estes pensamentos ajudaram a Velha a deitar e adormecer sem saber que dormia.

22 janeiro 2008

NB-002 - Maus pensamentos

O cheiro de comida da casa vizinha tira-me a vontade de comer.

Enche-me de maus pensamentos, desejos inconfessados de “fazer acontecer” - torresmos queimados, moscas no guisado, baratas no refogado, gritos de maridos zangados, choros de crianças agoniadas, mães rabugentas e descabeladas.

Fecho as janelas e espero que o vento leve a lembrança e lave minhas idéias.

NB-001 – Fim de tarde

A tarde estendeu-se sobre a cidade em tons doirados, deixando no céu pequenas pinceladas quentes.

Uma suave brisa trouxe um som antigo, cantiga entre doce e triste lembrando um embalo.

Pombos em vôos circundantes descreviam infatigáveis acrobacias.

Deixei-me ficar esquecida das horas, sentindo a vida à minha volta.

MC-045 – Baú de fotografias

Do baú cheio de fotografias antigas vem um cheiro de alfazema que lembra sedas e saias compridas. Apetece-me ouvir “Pavana para uma infanta defunta”.

13 dezembro 2007

MC-044 – Cão na varanda

Na casa em frente mora um cão rabugento. Corre e ladra até se engasgar impotente perante os cachorros que arrastam felizes os seus donos.

MC-043 – Nos céus

Nos céus de São Paulo dois helicópteros pairam sobre a cidade enquanto uma garça, silenciosa e branca, voa veloz arrastando o meu olhar.

MC-042 – O gato

O gato, um olho aberto outro fechado, parecia ausente, Tia Micas estranhando o silêncio na casa correu para a gaiola onde já não havia canário...

MC-041 - Zizi

Zizi, a boneca de minha Mãe, tinha rosto de porcelana, olhos azuis, laços no cabelo em cachos e os braços estendidos numa eterna espera de agrados.

20 outubro 2007

C-001 - DESCOBERTAS DE UM CÃO

Naquela primeira Primavera da vida do nosso cachorrinho, aconteceram-lhe coisas surpreendentes.

Ele tinha apenas três meses quando o meu filho Gustavo o levou para nossa casa, Sentia-se, estranho, friorento e nada mais queria que comida e carinhos.

Se um cachorro pode parecer um pardal assustado acho que era este o caso...

Demorou a explorar a casa e a descobrir a porta para o quintal.

O Inverno terminara, os dias começaram a ficar maiores e mais claros e parecia até que todos tinham vontade de cantar, brincar, desarrumar gavetas e fazer grandes limpezas... Até lhe deram outro caixote maior e uma almofada nova, grande e macia...

Repetiam-lhe tantas vezes a mesma palavra que acabou percebendo ser esse o seu novo nome: Gimbras.

Nessa altura já conseguia descer as escadas sem meter os pés pelas mãos, comer sem entornar o prato e se lambuzar todo e, o que muito lhe custava, ficar sentado esperando o sinal para saltar para o colo do dono.

Mas este momento ainda o deixava algo perplexo: porque seria que esse dono tão querido não se deitava também no chão e em vez disso o obrigava a pular, a pular até por fim se conseguir empoleirar em seus joelhos duros e só depois, e nem sempre, lhe deixava lamber os pêlos da cabeça mas nunca lhe mordiscar nem puxar as orelhas?!

Também já corria á desfilada pelo quintal e brincava de apanhar e trazer a bola.

Sim, agora estava feliz, sentia-se bem, já não tinha frio e a chuva leve e miudinha que por vezes ainda caía até era agradável e fazia sair da terra um aroma especial .

E foi então que se deu a primeira descoberta que o encheu de inquietação :

Uma manhã no tapete de erva verde e cheirosa, em cima de uma perna só, apareceu um ser branco que agitava umas quatro ou cinco asas. O cachorro contou-se a si próprio quatro pernas e uma linda cauda todas pretas e comparou: cinco também.

Mas aquele ser branco que não saía do mesmo lugar e aparecera assim de repente naquela manhã, era muito mais alto que ele e deitava um perfume desconhecido daquela cabeça emplumada.

Durante dois dias Gimbras, ladrou, avançou, recuou, saltou ao redor daquela coisa que lhe continuava delicadamente respondendo com acenos de vento.

A mulher-mãe-do-dono apareceu à janela da casa e gritava toda feliz: "Olha a Primavera ...Chegou ...chegou...Está um magnífico dia...E olha ali um Lírio... tão branquinho!... Está mesmo um dia magnífico ...”

Não sei se todo este barulho acordou o quintal mas logo surgiram da terra mais lírios brancos, logo outros amarelos e ainda outros roxos. O cachorro corria maravilhado de uns para os outros; dando os bons dias e ladrava e saltava-lhes à volta tentando chamá-los para brincar. Até que cansado, parava, olhava, sentava e esperava para de novo recomeçar com as cabriolas.

Por fim tudo voltou à tranquilidade e acabou se habituando àqueles amigos que não sabiam brincar e tinham o tal cheiro tão diferente do seu.

Mas dias depois nova surpresa veio animar sua vida:

Vindos do céu começaram a chegar aos bandos flores e mais flores... umas brancas, outras amarelas, azuis e castanhas, extravagantemente pintalgadas. Não tinham pés nem estavam presas às ervas.

Pareciam coisas loucas. Agitavam os braços-asas, davam voltas, subiam, desciam cheiravam as flores do chão e só não pousaram nele certamente pela protecção do seu casaco de peles e pelos saltos e latidos com que as recebeu.

Vinham cedo com o sol e à tardinha assim que escurecia desapareciam sem se saber para onde.

Por fim começou a achá-las engraçadas e acabaram brincando às escondidas. Mas era difícil ficar quietinho fingindo de morto para depois dar o salto e fazê-las fugir bate-que- bate, azinhas-me-salvem.

Ele ficava a vê-las voar e não podia deixar de sorrir pelo susto que lhes pregara. Agora já sabia que elas se chamavam borboletas. Boas de ver mas não de comer.

A propósito de comer... seus dentes continuavam afiados mas agora eram fortes e os tapetes e as madeiras tomavam novas formas e multiplicavam-se espalhados por todo o quintal.

Este seu lado artístico não foi apreciado pelo seu dono e ainda menos pela Avó Olívia, a senhora mais velha, a que morava do outro lado do muro, Ai! como ela que se fartou de falar, gesticular... Que susto levou quando a viu de vassoura na mão...

Juntaram seus belos trabalhos e meteram tudo num saco:

-- Lixo... só lixo.... que vergonha seu Gimbras!!! “

Outra descoberta surpreendente aconteceu uns tempos depois quando chegou o verão e com ele aquelas claras e longas noites de luar que lhe traziam a vozes e cheiros dos cachorros das redondezas:

Sem saber como, sentiu sair de sua garganta um longo som que parecia vindo do mais fundo de si próprio... subia, descia, vibrava, ondulava !

Experimentou algumas variantes que achou simplesmente belas.

E assim se iniciou naturalmente no canto coral esmerando-se nos solos agudos.

Isto deu-lhe um enorme prazer mas também problemas com pessoas da vizinhança que tentavam berrar mais alto que ele e ainda lhe atiravam água ( daquela de beber... não da de marcar território ). Felizmente a almofada ficava dentro da casota e eles não a conseguiam atingir...

Depois foi a época de correr atrás dos pássaros que vinham debicar a fruta, e a dos gatos que do alto dos muros saltavam para as árvores tentando pegar os pássaros e sem vergonha lhe faziam caretas, miavam e assopravam mas sem chegarem perto de si, com medo de seus dentes e latidos.

Foi então que percebeu mudara de voz.

Mas da primeira vez que rosnou levou um enorme susto. Tão grande que se escondeu de si próprio. Novo rosnado e aí sentiu o focinho arreganhando franzido, caninos de fora.

Que coisa estranha.e medonha... De peito inchado arremeteu contra o desconhecido e por pouco não mordeu a própria cauda...

Maravilhado percebeu que o rosnar, embora mais abafado e menos barulhento que o ladrar tinha um excelente efeito nos gatos, pássaros e até sobre as pessoas.

Também conseguia saltar mais alto, muito alto mesmo.

E finalmente um dia começou a “construir” buracos na terra. Escavar!!!

A sua primeira obra de engenharia foi um túnel para o quintal da vizinha Foi uma grande vitória alargar assim seu território, correr com os gatos e farejar metodicamente este novo espaço até então inacessível.

Está-se mesmo a ver que isto lhe trouxe mais uma vez ralhos, gritos, água e até pedradas...

Mas terrível era o frio que sentia, quando por cima do muro apareciam faiscando, ameaçadores, os olhos de vidro da senhora do pelo encaracolado e branco.

Sim, podia até cheirá-la nos dias em que ela ficava escondida do lado de lá gritando para o lado de cá... Palavras, ai tantas palavras... era uma senhora muito culta, sabia mesmo muitas palavras... (O que seria isso de “besta quadrada ou bad-black-dog?!)

Mas ela não sabia saltar o muro, nem sequer conseguia escavar um caminho até ele!

Com essa certeza e sentindo-se finalmente “dono do pedaço”, meticulosamente lá foi demarcando o quintal, de perninha ao lado e nariz no no ar, enquanto a olhava orgulhoso com seus pequenos e redondos olhinhos cor de mel.

Mais seguro de si e feliz da vida, Gimbras descobriu os prazeres de brincar com a sua almofada “americana”. ( Devo confessar que fui eu que a comprei, .foi irresistível ao imaginar o cão preto deitado na bandeira ...)

Nunca pensei no quanto e como essa resistente almofada se tornaria num brinquedo tão apreciado e querido.

E ele corria, fintava e atirava-a ao ar, corria e voltava, saltava, trepava e cavalgava alegre, tonto, sem ver flores nem couves, até embater nalguma árvore e cansado do novo jogo, adormecer ternamente a ela abraçado.preparando-se para novo, frenético e estimulante exercício.

Pensando agora nisso, acho que foi por essa altura que os nossos vizinhos, debruçados das janelas atentos e carinhosos o começaram a presentear com pedacinhos de carne, ossos com tutano e, ternurentos ainda animavam o Gimbras comentando:

--“Ai que lindinho!...olhem só como é alegre ... e tão engraçadinho !!!”

E assim se passaram os primeiros anos da vida do nosso cachorrinho.

08 agosto 2007

LL-001 - Sons na noite

Três sapos sentaram a coaxar junto à porta de Maria, coaxa que coaxa, ela sem dormir e o marido sem vir.

Três moscas pousaram a zumbir na janela de Maria; zumbe que zumbe, ela sem dormir e o marido sem vir.

Três cegonhas pararam a matraquear na chaminé da casa de Maria; matraqueia que matraqueia, ela sem dormir e o marido sem vir.

Três horas começaram a badalar no relógio da casa de Maria; badala que badala, ela sem dormir e o marido sem vir.

Três gargalhadas por fim soaram junto à cama de Maria; gargalha que gargalha, ela a sorrir e o marido sem dormir.

18 junho 2007

MC-040 - Maldita política

Grumilde adormeceu frente à TV, era campanha eleitoral. Ouvindo palmas e gritos, corre, dá uma bofetada no filho, tropeça no gato e insulta a vizinha