20 outubro 2007

C-001 - DESCOBERTAS DE UM CÃO

Naquela primeira Primavera da vida do nosso cachorrinho, aconteceram-lhe coisas surpreendentes.

Ele tinha apenas três meses quando o meu filho Gustavo o levou para nossa casa, Sentia-se, estranho, friorento e nada mais queria que comida e carinhos.

Se um cachorro pode parecer um pardal assustado acho que era este o caso...

Demorou a explorar a casa e a descobrir a porta para o quintal.

O Inverno terminara, os dias começaram a ficar maiores e mais claros e parecia até que todos tinham vontade de cantar, brincar, desarrumar gavetas e fazer grandes limpezas... Até lhe deram outro caixote maior e uma almofada nova, grande e macia...

Repetiam-lhe tantas vezes a mesma palavra que acabou percebendo ser esse o seu novo nome: Gimbras.

Nessa altura já conseguia descer as escadas sem meter os pés pelas mãos, comer sem entornar o prato e se lambuzar todo e, o que muito lhe custava, ficar sentado esperando o sinal para saltar para o colo do dono.

Mas este momento ainda o deixava algo perplexo: porque seria que esse dono tão querido não se deitava também no chão e em vez disso o obrigava a pular, a pular até por fim se conseguir empoleirar em seus joelhos duros e só depois, e nem sempre, lhe deixava lamber os pêlos da cabeça mas nunca lhe mordiscar nem puxar as orelhas?!

Também já corria á desfilada pelo quintal e brincava de apanhar e trazer a bola.

Sim, agora estava feliz, sentia-se bem, já não tinha frio e a chuva leve e miudinha que por vezes ainda caía até era agradável e fazia sair da terra um aroma especial .

E foi então que se deu a primeira descoberta que o encheu de inquietação :

Uma manhã no tapete de erva verde e cheirosa, em cima de uma perna só, apareceu um ser branco que agitava umas quatro ou cinco asas. O cachorro contou-se a si próprio quatro pernas e uma linda cauda todas pretas e comparou: cinco também.

Mas aquele ser branco que não saía do mesmo lugar e aparecera assim de repente naquela manhã, era muito mais alto que ele e deitava um perfume desconhecido daquela cabeça emplumada.

Durante dois dias Gimbras, ladrou, avançou, recuou, saltou ao redor daquela coisa que lhe continuava delicadamente respondendo com acenos de vento.

A mulher-mãe-do-dono apareceu à janela da casa e gritava toda feliz: "Olha a Primavera ...Chegou ...chegou...Está um magnífico dia...E olha ali um Lírio... tão branquinho!... Está mesmo um dia magnífico ...”

Não sei se todo este barulho acordou o quintal mas logo surgiram da terra mais lírios brancos, logo outros amarelos e ainda outros roxos. O cachorro corria maravilhado de uns para os outros; dando os bons dias e ladrava e saltava-lhes à volta tentando chamá-los para brincar. Até que cansado, parava, olhava, sentava e esperava para de novo recomeçar com as cabriolas.

Por fim tudo voltou à tranquilidade e acabou se habituando àqueles amigos que não sabiam brincar e tinham o tal cheiro tão diferente do seu.

Mas dias depois nova surpresa veio animar sua vida:

Vindos do céu começaram a chegar aos bandos flores e mais flores... umas brancas, outras amarelas, azuis e castanhas, extravagantemente pintalgadas. Não tinham pés nem estavam presas às ervas.

Pareciam coisas loucas. Agitavam os braços-asas, davam voltas, subiam, desciam cheiravam as flores do chão e só não pousaram nele certamente pela protecção do seu casaco de peles e pelos saltos e latidos com que as recebeu.

Vinham cedo com o sol e à tardinha assim que escurecia desapareciam sem se saber para onde.

Por fim começou a achá-las engraçadas e acabaram brincando às escondidas. Mas era difícil ficar quietinho fingindo de morto para depois dar o salto e fazê-las fugir bate-que- bate, azinhas-me-salvem.

Ele ficava a vê-las voar e não podia deixar de sorrir pelo susto que lhes pregara. Agora já sabia que elas se chamavam borboletas. Boas de ver mas não de comer.

A propósito de comer... seus dentes continuavam afiados mas agora eram fortes e os tapetes e as madeiras tomavam novas formas e multiplicavam-se espalhados por todo o quintal.

Este seu lado artístico não foi apreciado pelo seu dono e ainda menos pela Avó Olívia, a senhora mais velha, a que morava do outro lado do muro, Ai! como ela que se fartou de falar, gesticular... Que susto levou quando a viu de vassoura na mão...

Juntaram seus belos trabalhos e meteram tudo num saco:

-- Lixo... só lixo.... que vergonha seu Gimbras!!! “

Outra descoberta surpreendente aconteceu uns tempos depois quando chegou o verão e com ele aquelas claras e longas noites de luar que lhe traziam a vozes e cheiros dos cachorros das redondezas:

Sem saber como, sentiu sair de sua garganta um longo som que parecia vindo do mais fundo de si próprio... subia, descia, vibrava, ondulava !

Experimentou algumas variantes que achou simplesmente belas.

E assim se iniciou naturalmente no canto coral esmerando-se nos solos agudos.

Isto deu-lhe um enorme prazer mas também problemas com pessoas da vizinhança que tentavam berrar mais alto que ele e ainda lhe atiravam água ( daquela de beber... não da de marcar território ). Felizmente a almofada ficava dentro da casota e eles não a conseguiam atingir...

Depois foi a época de correr atrás dos pássaros que vinham debicar a fruta, e a dos gatos que do alto dos muros saltavam para as árvores tentando pegar os pássaros e sem vergonha lhe faziam caretas, miavam e assopravam mas sem chegarem perto de si, com medo de seus dentes e latidos.

Foi então que percebeu mudara de voz.

Mas da primeira vez que rosnou levou um enorme susto. Tão grande que se escondeu de si próprio. Novo rosnado e aí sentiu o focinho arreganhando franzido, caninos de fora.

Que coisa estranha.e medonha... De peito inchado arremeteu contra o desconhecido e por pouco não mordeu a própria cauda...

Maravilhado percebeu que o rosnar, embora mais abafado e menos barulhento que o ladrar tinha um excelente efeito nos gatos, pássaros e até sobre as pessoas.

Também conseguia saltar mais alto, muito alto mesmo.

E finalmente um dia começou a “construir” buracos na terra. Escavar!!!

A sua primeira obra de engenharia foi um túnel para o quintal da vizinha Foi uma grande vitória alargar assim seu território, correr com os gatos e farejar metodicamente este novo espaço até então inacessível.

Está-se mesmo a ver que isto lhe trouxe mais uma vez ralhos, gritos, água e até pedradas...

Mas terrível era o frio que sentia, quando por cima do muro apareciam faiscando, ameaçadores, os olhos de vidro da senhora do pelo encaracolado e branco.

Sim, podia até cheirá-la nos dias em que ela ficava escondida do lado de lá gritando para o lado de cá... Palavras, ai tantas palavras... era uma senhora muito culta, sabia mesmo muitas palavras... (O que seria isso de “besta quadrada ou bad-black-dog?!)

Mas ela não sabia saltar o muro, nem sequer conseguia escavar um caminho até ele!

Com essa certeza e sentindo-se finalmente “dono do pedaço”, meticulosamente lá foi demarcando o quintal, de perninha ao lado e nariz no no ar, enquanto a olhava orgulhoso com seus pequenos e redondos olhinhos cor de mel.

Mais seguro de si e feliz da vida, Gimbras descobriu os prazeres de brincar com a sua almofada “americana”. ( Devo confessar que fui eu que a comprei, .foi irresistível ao imaginar o cão preto deitado na bandeira ...)

Nunca pensei no quanto e como essa resistente almofada se tornaria num brinquedo tão apreciado e querido.

E ele corria, fintava e atirava-a ao ar, corria e voltava, saltava, trepava e cavalgava alegre, tonto, sem ver flores nem couves, até embater nalguma árvore e cansado do novo jogo, adormecer ternamente a ela abraçado.preparando-se para novo, frenético e estimulante exercício.

Pensando agora nisso, acho que foi por essa altura que os nossos vizinhos, debruçados das janelas atentos e carinhosos o começaram a presentear com pedacinhos de carne, ossos com tutano e, ternurentos ainda animavam o Gimbras comentando:

--“Ai que lindinho!...olhem só como é alegre ... e tão engraçadinho !!!”

E assim se passaram os primeiros anos da vida do nosso cachorrinho.

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