19 março 2008

C-002 - A Velha

Era uma vez uma velha, velha, mas velha mesmo.

Sentou-se à porta a ver passar os dias e as pessoas correndo.

Uma vizinha deu-lhe um pão e outra um cobertor.

Passou um senhor de chapéu e gravata que desviou o olhar cofiando o bigode.

O sol chegou de mansinho e aqueceu-lhe os pés deformados enfiados nas chinelas do pano das calças de seu falecido e muito amado marido.

Um burro que passava carregado de fruta e com um chapéu de palha donde saiam grandes orelhas, parou e ficou a fazer-lhe companhia dando-lhe algumas das moscas que desde manhã se deliciavam nas remelas dos seus olhos.

O dono do burro saiu da taberna tentando sentar-se no pouco espaço livre entre a fruta, mas o filho mais rápido que gato ocupou esse lugar. Ele chamava-se Abel, o filho, e o pai Antão e o burro não sei, porque ele não disse nada, só zurrou.

Sim acho que seria esse o nome porque a velha gritou: ¨Sózurras cheiras mal... Dá-me uma maçã! ¨

Rápido, Abel atirou uma maçã que acertou direitinho na barriga flácida e vazia daquela que poderia e talvez tivesse sido a avó de toda a Vila. A maçã rolou pela saia que lhe tapava as pernas de escrivaninha, deteve-se nos joanetes como se esperasse ser agarrada mas como nada aconteceu, continuou rolando e chegou perto do Sózurra que a comeu sem mastigar.

Todos se calaram porque nada havia a dizer.

A Velha fechou os olhos cansados e lembrou quando era jovem e as árvores tinham maçãs e ela bons dentes.

Um sino longe avisou o fim do dia.

Homem, rapaz e burro, sobressaltados tomaram o caminho de casa.

As janelas começaram a ser fechadas e a vizinha ainda chamou: ¨Oh senhora, vai escurecer e está esfriando! Vá para casa, criatura!¨

Dona Quitéria, assim era o nome da velha: Quitéria de Menezes Sebastiana olhou na direcção do chamado, e fitou surpreendida as Sardinheiras que a chamavam.

E pensando no burro, no rapaz, na maçã e agora nas flores que gritavam, encolheu-se no xale roxo, perfumado na alfazema da arca e refletiu em como a vida estava estranha e modificada.

Sem dúvidas, nem mais reparos, suspirou e olhou para o outro lado.

A estrada apagava-se antes da última casa.

Porque teria desaparecido a estrada se a casa da prima Elvira, (amarela, a casa e a prima), ainda lá estava. A prima já não. Fora-se no último Inverno.

Não este ano, mas no último já passado, o lembrado, porque o seu finado Sebastião também se tinha ido. Apagado. Ele sempre fora uma pessoa calada, quase nunca se dava por ele, não incomodava ninguém. E a velha lembrou o candeeiro de petróleo, o cheiro de arnica e depois o grande silêncio que ficou na casa. Apagado, acabado, enterrado...

Dona Quitéria levantou-se a custo e dobrada.

E mais dobrada ficou ao entrar na casa.

O ar da casa era pesado, não pelo cheiro de carvão ou por recordação de cozinhados.

Era pesado, como as janelas eram estreitas, os bancos duros e o chão ondulado.

Sempre fôra assim, por isso tão agradável era estar sentada do lado de fora, junto à porta semi-serrada.

Fechou os olhos para melhor se orientar e, com os dedos nodosos e trémulos percorreu a parede, a mesa e encontrou a cadeira que sustinha a cama da perna partida.

Nem para isso seu Sebastião lhe servira. Sempre calado mas cheio de bagaço que o frio desse grande Inverno desculpava, atirara um pontapé na cadela e os dois, ele e a cadela, derrubaram a cama. Até que foi bem feito. Pena que não foi a perna dele que quebrara, que Deus a perdoe... Gemera seu Sebastião, ganira a cadela.

E como um mal não vem só, o candeeiro apagou e D. Quitéria tivera que ir pedir ajuda e luz.

Havia muitas velas na Igreja, mas ficava longe e o Prior tinha saído para benzer um senhor da casa grande, a de pedra de granito.

Áquela hora deviam estar todos a comer na grande cozinha, que os senhores não gostavam do salão.

Além de não se ouvirem quando falavam, tão comprida era a mesa, a cera das 50 velas do candeeiro por vezes derretia e caía na comida ou, como até acontecera um dia, ainda seu terceiro marido era vivo e primo em não sei que grau dos senhores, que por via desse mesmo parentesco tinham feito a gentileza de os deixar assistir ao repasto, a cera derretida caíra bem na coroa do antigo prior.

E este que não era homem de poucas falas, logo ali disse tantas e tão poucas que todos se levantaram da mesa e nunca mais houve janta no salão.

Ainda era viva a Dona Menina Josefina que Deus tenha em sua glória e sossego. Bem merecido, que ela era uma santa e todas a sobras da farta mesa iam para a Casa da Roda e não queria saber de as dar aos porcos.

Que a morte lhe seja leve e os anjos a acompanhem...

Só de lembrar tanta fartura um fio de saliva escorreu por uma das rugas do magro queixo.

Ai aquela boa senhora!... Não que ela não apreciasse carne de porco, salgada ou em banha, mas porco é porco. Se os deixarem soltos eles lá encontram que comer, que os narizes são próprios para até desenterrarem raízes. Se toda a gente tivesse assim tão boa boca, não haveria fome.

O senhor Salazar lá de Lisboa explicou isso muito bem: A fome é o produto da gula.

O que está à mão come-se e se não está semeia-se.

Além de que ser magro é próprio de pessoa fina e poupa-se no vestir.

É só ver como eles deixaram de usar suspensórios e só usam cinto.

Pois chamem-lhe parvos ou doutores, o cinto diminui o estômago e escusado será dizer que a fome fica logo pela metade.

Será por isso que os senhores da casa grande e os amigos de Lisboa não arrotam nem ventam.

Que educação não é só nas palavras...

E a Velha lembrou, oh se lembrou aquele jantar em que não se chegou a comer o conduto quanto mais os doces! ... "Barrigas de freira".

Nunca percebeu o nome nem o gosto desse doce. Vai ver que era pecado, e vai ver daí que foi mesmo por isso que as velas derreteram e como lágrimas de fogo caíram no gordo Prior.

Ele não usava cinto por causa da batina e por isso mesmo tinha de comer muito.

A criada desse Prior contara na mercearia que se o Prior ficava mal comido, as calças lhe caiam.

Dizia mais umas coisas mas isso agora não vem ao caso.

O caso foi das velas, da luz que faltou, da prima que se finou, do Sebastião que gemia e a cadela que gania.

E para quê lembrar isso tudo agora?!

De Deus devemos esperar tudo: os bens, os males, secas e as chuvas e o que mais a ele por sua altíssima recreação lhe aprouver enviar.

A cama tinha a perna partida e isso é que era importante… Lembrar, para sentar de mansinho e se deixar escorregar para o outro lado.

Há males que vêm por bem. Quando abriram o poço da casa ao lado, o terreno afundou um pouco e com tanta sorte que o chão inclinou e agora quando se vai deitar é só um jeitinho e logo escorrega para o lado seguro.

Difícil era levantar, tinha que ser muito cautelosa. Mover-se como as lagartas nas couves do quintal.

Tudo questão de prática.

Aprende-se muito com os animais. Eles lá sabem... e não precisaram olhar nos livros.

E agora, pensando bem, também o facto de ter ficado sem candeeiro era menos preocupações no apagar e na despesa... Sim, porque além de dar menos luz, que nem dava para enfiar uma agulha, o petróleo que os senhores do Busque-o-partam vendiam andava pelo peso de ouro. Uma vergonha!

Mas amanhã havia de nascer o Sol, se fosse caso disso... nunca sabemos o que esperar. Que isto de Sol e de Lua só nos tempos antigos tinham leis e horários... Agora com as modernices cada um faz o que lhe dá na real gana. Haja o caso do “eclipste” do outro ano. Os melros calaram-se e os mochos afinaram a goela. Mas foi coisa de pouco tempo. O maior barulho foi dos ratos que não sabiam se era dia se noite , se hora de entrar ou sair dos esgotos e vai de correr dum lado para o outro. Até que teve sua graça...

E estes pensamentos ajudaram a Velha a deitar e adormecer sem saber que dormia.